terça-feira, 17 de agosto de 2010

Os Paradoxos da Minha Fé (parte 1)


Ed René Kivitz




Creio porque é absurdo.
Tertuliano (155-220)



Paradoxo é aparente falta de nexo ou de lógica, algo que contém uma contradição. Isso faz lembrar a história do Rebe Benjamin, chamado para arbitrar um litígio. Ouviu o primeiro reclamante e disse: “Você tem razão”. Ouviu também o segundo reclamante e deu o mesmo parecer: “Você tem razão”. Sua esposa sara, tendo ouvido a conversa, depois que os reclamantes saíram furiosos, comentou com o Rebe: “Perdão, meu senhor, mas não creio que dois homens que discordam entre si podem estar igualmente certos”, ao que o Rebe Benjamin retrucou: “Você tem razão”.

Somente quem transita bem no mundo dos paradoxos compreende como dois homens que discordam entre si podem estar igualmente certos. A maioria das pessoas, entretanto, raciocina em termos de lógicas simples, do tipo “se eu estou falando a verdade, então ele está mentindo” ou “se você está certo, então estou enganado”. Leonardo Boff adverte, entretanto, que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. E justamente por isso, naquela história, quem tem mesmo razão é o Rebe.

Carlos Mesters disse que “a distância que vai entre a janela e os meus olhos determina o que vejo lá fora na rua. Se fico mais perto, a visão se alarga; se fico de longe, a visão se estreita. Se vou à esquerda, enxergo a praça; se vou à direita, enxergo a torre. Sou eu que determino o que aparece lá fora na rua para servir de panorama aos meus olhos. Mas nem por isso é falso ou errado aquilo que vejo e descrevo, pois não sou eu que crio as coisas que aparecem lá fora. Já existiam antes de mim. Não dependem de mim. É útil e até necessário que cada um defina bem clara e honestamente aquilo que vê pela sua janela. Isso redundará em benefício da análise que se faz da realidade da vida. O que me consola é que todos somos assim. Bem limitados e condicionados pelos próprios olhos, dependentes uns dos outros. É trocando as experiências, numa conversa franca e humilde, que nos ajudamos a enxergar melhor as coisas que vemos, e a romper as barreiras que nos separam sem razão. Pois ninguém é dono da verdade. Intérprete só”.

Com Mesters aprendemos que nenhuma teologia pode reivindicar ser a detentora da verdade. Até porque o próprio conceito de teologia é paradoxal. Tomando como correta a definição de Frei Betto: “teologia é o esforço racional de apropriação das verdades de fé”, ficamos diante do paradoxo: sendo verdade de fé extrapola a apropriação racional; sendo apropriação racional prescinde de fé. Por esta razão, o Cristianismo não depende da ortodoxia, mas da revelação. A ortodoxia é uma teologia elevada à categoria de verdade absoluta. A revelação é o encontro com uma pessoa. Uma pessoa que não cabe nem na teologia nem na ortodoxia. Uma pessoa é sempre um paradoxo (perdoe o sempre).

Nos últimos tempos estou ocupado em teologizar a respeito da relação entre Deus e os homens na construção da história, a relação entre soberania de Deus e liberdade humana, e a relação de Deus com o tempo e a eternidade. Este é o meu esforço pessoal de tentar conjugar a realidade vivencial, o registro da revelação e uma lógica mínima que faça com que as duas coisas convivam coerentemente. Eis aí três campos que consigo compreender apenas em termos de aparentes paradoxos.

1- Deus escreve a história através de mãos humanas

Esta afirmação pode ser uma paráfrase do Salmo 77.20: Deus guiou seu povo pelas mãos de Moisés e de Arão. O que nos faz lembrar a expressão impressa nos adesivos dos carros dos cristãos piedosos: “Guiado por Deus, dirigido por mim”. O paradoxo está posto: se de Deus escreve a história então as mãos humanas não são livres. Mas se as mãos humanas são livres, não é Deus quem escreve a história. Alguém poderia objetar que isso não é um paradoxo, pois não há necessária contradição aparente: as mãos humanas podem ser manipuladas pelas mãos de Deus, como o pai que segura a mão do filho para ajudá-lo a escrever. Mas não é esse o espírito da expressão. A questão por trás quer saber se a história é escrita a quatro mãos ou duas, as de Deus. Ou mesmo, se os rabiscos humanos no papel exigem de Deus providências para que a obra final não seja estragada. Em outras palavras: a atuação humana na história obriga Deus a necessariamente refazer seus caminhos? Abre parêntesis. Incluo a palavra “necessariamente” por acreditar na real possibilidade de que as mãos humanas façam o que Deus faria, e nesse caso, Deus não precisa refazer seus caminhos. Fecha parêntesis.

A narrativa bíblica registra pelo menos três exemplos da liberdade humana impondo limites à atuação de Deus, ou, exemplos de como Deus precisa fazer curvas para voltar ao rumo dos seus propósitos, ou ainda, exemplos de como Deus escreve a história através de mãos humanas: a posse da terra prometida, a escolha de um rei para Israel, e a construção do templo em Jerusalém.

O trajeto entre o Egito e a terra prometida duraria aproximadamente três meses, mas o povo de Israel demorou 40 anos para entrar em Canaã. A razão é simples: a primeira geração que saiu do Egito se acovardou diante dos ocupantes da terra e se recusou a entrar. Dos doze espias enviados para sondar a terra, somente Josué e Calebe demonstraram disposição de fé para tomar posse da promessa feita por Deus. O resultado foi que Deus decidiu colocar o povo em marcha pelo deserto, esperar a primeira geração morrer, e dar uma nova oportunidade para Israel. Caso a segunda geração se acovardasse, provavelmente a peregrinação pelo deserto se prolongaria. Mas a segunda geração não se acovardou. Deus fez um conclave para nova celebração da Lei (por esta razão Deuteronômio 5 repete Êxodo 20) e delegou a Josué a função outrora exercida por Moisés. Em outras palavras, Deus demorou 40 anos para avançar o que poderia ter avançado em três meses.

No tempo em que Samuel era sacerdote e profeta em Israel, o povo pediu um rei, à exemplo de todas as outras nações. Samuel não gostou da idéia e foi chorar diante de Deus. Deus consolou Samuel dizendo que “eles não te rejeitam como sacerdote e profeta, mas a mim como Deus”. Deus esclarece ao povo as implicações de ter um rei e adverte que a idéia não é boa, mas, mesmo assim, aquiesce ao pedido e concede um rei a Israel: Saul. A sucessão de reinados divide o povo, separando dez tribos de um lado (Reino do Norte = Israel, cuja capital era Samaria) e duas tribos (Judá e Benjamim) de outro (Reino do Sul = Judá, cuja capital era Jerusalém). Foram mais de 600 anos de sofrimento para Israel (120 anos de reino unido e 400 anos de reinos do norte e sul), dando a Deus o trabalho de disciplinar o povo (fim do reino do Norte, conquistado pela Assíria no século VII a.C., e 70 anos de cativeiro do reino do Sul sob a domínio Babilônico no século V a.C.) e fazer nascer o Messias, que entraria em Jerusalém aclamado como o filho de Davi. Em outras palavras, Deus faz uma tremenda curva para suscitar a semente de Abraão, preservando a descendência de Judá, um dos filhos de Isaque.

O mesmo fenômeno ocorre em relação ao templo de Jerusalém. Num de seus momentos de ócio na varanda do palácio (num deles Davi viu Bateseba e você conhece a história), o rei Davi teve a brilhante idéia de construir um templo para o Deus de Israel, afinal os deuses das outras nações tinham onde morar e o Deus de Israel era um sem-teto, isto é, um com-barraca – o Tabernáculo. Natã adverte Davi afirmando que Deus jamais solicitará um templo, mas mesma assim Davi decide levar adiante seu projeto, acreditando estar fazendo algo para glorificar a Deus. Deus então decide acolher a oferta de Davi, assume o compromisso de ouvir as orações naquele templo, e a partir de então o templo de Jerusalém é incluído no processo histórico da redenção – a mesma coisa que ocorre com o rei e os estados-nações. Quando Jesus de Nazaré entra em cena, Deus faz um esforço tremendo para desmontar a figura do templo e incluir novamente a figura do Tabernáculo: em Jesus, Deus tabernaculou entre nós, pois o Filho do Homem, diferentemente dos passarinhos, não tinha endereço fixo.

A afirmação de que Deus não está brincando de liberdade é tão real que através do profeta Deus mesmo expressa uma frustração. Falando a respeito de seu cuidado para com o povo de Israel, que compara a uma vinha, afirma ter feito de tudo para colher uvas boas, mas as uvas foram amargas (Isaías 5), o que o faz exclamar em puro espanto que não conseguia entender como as pessoas poderiam preferir a água enlameada da chuva às águas cristalinas do manancial (Jeremias 2.12,13).

Também por esta razão creio que Deus não tem planos, mas propósitos. A realização cabal dos propósitos de Deus está garantida pelo fato de Deus ser soberano, enquanto as idas e vindas dos planos de Deus são necessárias em razão da liberdade humana.

Os três exemplos citados ilustram como Deus, para garantir a concretização de seus propósitos, redesenha seus planos em virtude das ações livres do homem. Mas você perguntaria onde está paradoxo, pois até agora não há nenhuma aparente contradição no fato de Deus permitir que a história se desenrole a partir das escolhas livres do homem. Por enquanto, o homem age e Deus reage. A questão é que essa não é toda a verdade. A verdade completa inclui a ação soberana de Deus em paralelo à ação livre do homem. Como pode ser isso, você perguntaria. A resposta pode ser desenhada partir de três outros exemplos: a saga de José do Egito, a rebeldia de Faraó, e a morte de Jesus Cristo.

2- Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana

Alguém diria que o paradoxo da afirmação consiste no fato de que se Deus age soberanamente, a ação humana não é livre, e se a ação humana é livre, Deus não é soberano ou não pode agir soberanamente.

Esta aparente contradição poderia ser desfeita por uma simples redefinição de soberania. Entendo soberania como a crença de que nada pode impedir Deus de executar sua vontade a não ser Ele mesmo, Deus.

A aparente contradição poderia ser desmontada também pela afirmação de que a soberania de Deus não anula a liberdade humana. Por exemplo, lá em caso sou soberano em relação aos meus filhos, mas isso não impede meus filhos de agirem livremente. Isso se aplica à relação entre Deus e o homem quando Deus soberanamente escolhe como usar sua soberania. Isto é, considerando que Deus soberanamente escolheu outorgar liberdade ao humano, esta liberdade humana em nada anula a soberania de Deus: o homem é livre porque Deus quer, e não porque Deus foi destituído de sua soberania.

Particularmente, acredito ter afirmado o óbvio. Mas os nossos óbvios não são necessariamente óbvios para os outros. Além disso, os nossos óbvios podem parecer simplistas em relação aos óbvios dos outros. Ou mais do que isso, os nossos óbvios podem sugerir covardia e fuga do debate aos olhos dos outros. Por esta razão, convém entender melhor como a soberania de Deus convive com a liberdade humana, e vice-versa.

Deus não está brincando de liberdade. A decisão divina em outorgar liberdade humana implica que Deus escolheu livre e soberanamente limitar sua atuação, visando dar espaço para a existência do homem e possibilitar sua convivência com ele.

José era um dos doze filhos de Jacó (cujo nome fora mudado para Israel), que dá origem às Doze Tribos de Israel. Sonhador, acreditava que Deus o havia escolhido para governar a família: os pais e os irmãos ainda se prostrariam diante dele reconhecendo sua grandeza. Evidentemente, os irmãos mais velhos detestaram a profecia e decidiram se livrar de José. Após uma razoável tramóia, José foi vendido pelos seus irmãos aos mercadores de escravos e foi parar no Egito. A Bíblia diz que “a mão de Deus era com José”, de modo que ele prosperou e se tornou uma espécie de primeiro ministro do Egito, com autoridade inferior apenas à do Faraó. Sua ascensão se deveu às interpretações de sonhos, especialmente a respeito das vacas magras e gordas, representavam sete anos de fartura e sete de fome. Orientou o faraó a armazenar no tempo da fartura para que se tivesse provisão no tempo da fome. Deu certo. Foi assim, fugindo da fome, que seus irmãos chegaram ao Egito e descobriram que o menino mimado vendido aos mercadores de escravos se tornara nada mais nada menos que o segundo homem mais poderoso do mundo de então. Diante dos irmãos perplexos, que faziam seu mea culpa entre lágrimas e desespero, José sai com a seguinte declaração: “não foram vocês quem me enviaram para cá, mas Deus”, pois “vocês intentaram fazer o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, não para minha própria satisfação, mas como instrumento para salvar a vida de muitos”.

Passados muitos anos, sobe ao trono um Faraó que jamais ouvira a história de José, e desconhecia que o povo israelita era sua descendência (israelita é o descendente do pai de José, Jacó, cujo nome foi trocado para Israel). Temendo pela segurança de seu reinado, em razão do aumento populacional do povo, o Faraó decide impor sobre os israelitas uma escravidão desumana (perdoe o pleonasmo). O povo escravizado clama ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó (Israel), que vocaciona Moisés como libertador. Moisés é enviado por Deus para negociar com o Faraó a libertação dos israelitas, mas o Faraó age obstinadamente impedindo o êxodo do povo. Deus age com braço forte e retira os israelitas do Egito após submeter os egípcios às duras penas das dez pragas. Os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, o povo que carregaria pela história o ventre prenhe do Messias prometido, nasce sob o signo da libertação. Mais adiante ficamos sabendo que tudo isso havia sido articulado por Deus: os sonhos de José, a venda de José como escravo no Egito, o sonho do Faraó interpretado por José, os anos de fartura e fome, a imigração da família de José para o Egito, os anos de escravidão, e, pasmem os senhores, o coração endurecido de Faraó, que pensava agir de livre vontade, mas obedecia um scripit elaborado por Deus.

O Messias nasce, cresce, anda por toda parte fazendo o bem, é rejeitado e traído pelo seu povo – a descendência de Israel, é preso sob acusação de sedição, morre na cruz do Calvário e ressuscita ao terceiro dia. No dia da festa do Pentecoste, celebrada anualmente pelos israelitas no 50º dia após a festa da Páscoa, Pedro, um dos chamados 12 apóstolos discípulos de Jesus, explica o advento Cristo e o derramar do Espírito Santo com as seguintes palavras: “vocês assassinaram Jesus de Nazaré, mas saibam que ele foi morto porque Deus assim planejou, e por esta razão o trouxe de volta da morte e o fez Senhor e Cristo (Messias)”. Parece que Pedro tinha boa memória, pois Jesus já havia dito que sua morte seria um assassinato, mas sua vida não lhe seria arrancada das mãos, pois será doada livremente.

Aí está um grande paradoxo: Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana. A saga de José é ao mesmo tempo resultado da ação livre de seus irmãos e da ação soberana de Deus; a rebeldia de Faraó é ao mesmo tempo uma ação livre do opressor de Israel como ação soberana do Deus de Israel; a morte de Jesus de Nazaré é ao mesmo tempo assassinato e auto-doação, ação livre dos homens e cumprimento do propósito eterno de Deus.

3- Deus conhece os fatos que ainda não aconteceram

O paradoxo consiste no seguinte: sendo fatos, fazem parte do passado, mas se ainda não aconteceram, fazem parte do futuro. Esse é o grande tema em debate no Teísmo Aberto.
O Teísmo Aberto afirma que Deus decidiu criar um universo no qual o futuro não pode ser totalmente conhecido, até mesmo por Ele, Deus. Para muitos adeptos do teísmo aberto o futuro não é uma realidade, isto é, ainda não existe, e Deus conhece apenas o que existe para ser conhecido. Este ponto de vista é chamado de “onisciência dinâmica”, onde o conhecimento de Deus a respeito do futuro é parcial, pois o futuro está parcialmente definido (fechado) e parcialmente indefinido (aberto). O conhecimento de Deus a respeito do futuro contém o que está determinado bem como o que é apenas possibilidade – isto é, é indeterminado. O futuro determinado inclui duas realidades: o que Deus decidiu que faria, e os eventos físicos determinados, como, por exemplo, o choque de um asteróide com a lua (ver John Sanders. Summary of openness theology. In: http://www.opentheism.info/, acessado em 21 de maio de 2007; ver também Gregory Boyd. God of the possible. Grand Rapids: 2000. p.32).

O casuísmo bíblico mostra que Deus conhece o futuro. Veja os seguintes exemplos:

. Então disse a Abrão: Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a nação, à qual ela tem de servir, e depois sairá com grande riqueza. (Gênesis 15.13,14)

. E ele clamou contra o altar por ordem do SENHOR, e disse: Altar, altar! Assim diz o SENHOR: Eis que um filho nascerá à casa de Davi, cujo nome será Josias, o qual sacrificará sobre ti os sacerdotes dos altos que sobre ti queimam incenso, e ossos de homens se queimarão sobre ti. (1Reis 13.2)

. Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade. (Isaías 46.9,10)

. As primeiras coisas desde a antiguidade as anunciei; da minha boca saíram, e eu as fiz ouvir; apressuradamente as fiz, e aconteceram. Porque eu sabia que eras duro, e a tua cerviz um nervo de ferro, e a tua testa de bronze. Por isso te anunciei desde então, e te fiz ouvir antes que acontecesse, para que não dissesses: “O meu ídolo fez estas coisas, e a minha imagem de escultura, e a minha imagem de fundição as mandou”. (Isaías 48.3-5)

. E puseram a sua sepultura com os ímpios, e com o rico na sua morte; ainda que nunca cometeu injustiça, nem houve engano na sua boca. (Isaías 53.9)

. Porque assim diz o SENHOR: Certamente que passados setenta anos em Babilônia, vos visitarei, e cumprirei sobre vós a minha boa palavra, tornando a trazer-vos a este lugar. (Jeremias 29.10)

Alguém poderia afirmar que Deus conhece do futuro apenas aquilo que determinou: Deus conhece o futuro como decreto. As profecias bíblicas seriam, portanto, anúncios antecipados daquilo que Deus decidiu fazer independentemente de quaisquer fatores, inclusive a livre vontade humana. Mas podemos fazer duas objeções a isto. A primeira, de ordem moral, a segunda, lógica.

Diz Ariovaldo Ramos que o futuro como decreto “parece fazer sentido em relação a profecias como as que se cumpriram na vida de Jesus Cristo. Mas e quanto àquelas de aviso, como a de que Pedro negaria a Cristo três vezes antes do cantar do galo ou o anúncio da traição de Judas Iscariotes? Se elas se enquadram nos decretos, Deus é culpado, pois, ao decretar que Pedro ou Judas faria o que deles foi dito, deixou-os sem escolha a não ser a de pecar segundo a palavra divina; logo, não poderiam ser passíveis de juízo, pois estavam amarrados a um desígnio inexorável. Há situações que foram pré-determinadas, até como juízo, mas foram devidamente anunciadas como tal – como no caso do endurecimento do coração de Faraó na ocasião do êxodo judeu. Cristo, porém, disse que os escândalos eram inevitáveis, mas não os escandalizadores (Mateus 18.7-9) (...) se todo aviso que se encontra na Bíblia é o deflagrar de um desígnio, então a história está mais para um grande teatro do que para o desenrolar de uma batalha pela salvação da humanidade”. Esta é a objeção de ordem moral. (Ariovaldo Ramos. Teologia e lógica. In: http://www.teologiabrasileira.com.br/Materia.asp?MateriaID=87 , acessado em 22 de maio de 2007)

A segunda objeção é de ordem lógica: “se Deus nada sabe [não conhece o futuro, digo eu], como pode decretar, uma vez que os fatos não caem de pára-quedas sobre a história, senão como corolário de um sem número de movimentos? Para decretar algo na história é preciso saber onde a história estará em determinado momento, uma vez que decretar é impor uma das variantes possíveis”, diz Ariovaldo Ramos. (Idem)

O futuro como decreto, ou o futuro como resultado da livre escolha humana – cenário onde os decretos se cumprirão, são conhecidos de antemão por Deus. Caso tudo seja decreto, o ser humano não é passível de julgamento moral. Caso tudo seja imprevisível, então a história está à deriva. Ambas as possibilidades não se encaixam no está revelado a respeito de Deus na Bíblia Sagrado.

O Teísmo Aberto tenta resolver esta questão argumentando que o futuro é parcialmente fechado (decretado) e parcialmente aberto (sujeito às ações livres). Isso é óbvio e acredito verdadeiro. Mas isso não dá margem para que se deduza necessariamente que Deus não conhece aquilo que no futuro está aberto. A afirmação de que Deus conhece apenas o que existe para ser conhecido, e o futuro aberto ainda não existe e, portanto, não pode ser conhecido nem mesmo por Deus, fica devendo explicações a respeito de algumas profecias. Como explicar textos como:

. E então verão vir o Filho do homem nas nuvens, com grande poder e glória. E ele enviará os seus anjos, e ajuntará os seus escolhidos, desde os quatro ventos, da extremidade da terra até a extremidade do céu (...) Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai. (Marcos 13.27-32)

. E, comendo eles, disse: Em verdade vos digo que um de vós me há de trair. E eles, entristecendo-se muito, começaram cada um a dizer-lhe: Porventura sou eu, SENHOR? E ele, respondendo, disse: O que põe comigo a mão no prato, esse me há de trair. Em verdade o Filho do homem vai, como acerca dele está escrito, mas ai daquele homem por quem o Filho do homem é traído! Bom seria para esse homem se não houvera nascido. E, respondendo Judas, o que o traía, disse: Porventura sou eu, Rabi? Ele disse: Tu o disseste. (Mateus 26.21-27)

. Replicou-lhe Jesus (a Pedro): Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes tu me negarás. (Marcos 14.30)

. Naqueles dias desceram profetas de Jerusalém para Antioquia; e levantando-se um deles, de nome Ágabo, dava a entender pelo Espírito, que haveria uma grande fome por todo o mundo, a qual ocorreu no tempo de Cláudio. (Atos 11.28)

. E, demorando-nos ali por muitos dias, chegou da Judéia um profeta, por nome Ágabo. E, vindo ter conosco, tomou a cinta de Paulo, e ligando-se os seus próprios pés e mãos, disse: Isto diz o Espírito Santo: Assim ligarão os judeus em Jerusalém o homem de quem é esta cinta, e o entregarão nas mãos dos gentios. (Atos 21.10,11)

Voltamos ao dilema anterior, caso Pedro e Judas tenham agido obedecendo um decreto de Deus, então são inocentes. Caso tenham feito o que fizeram por livre escolha, então o futuro era previamente conhecido. Concordo plenamente quando o Teísmo Aberto diz que o futuro está parcialmente fechado (decretado) e parcialmente aberto (sujeito às escolhas humanas livres). Mas não vejo como necessária a crença em que Deus não conheça o futuro aberto, até porque o casuísmo bíblico e a lógica teológica evidenciam o contrário.

Mas como pode Deus conhecer o que ainda não aconteceu como se já tivesse acontecido? Na verdade, como pode Deus chamar à existência as coisas que não são como se já fossem?”. Eis mais uma questão com a qual consigo conviver apenas em termos de paradoxo.

Considerações (quase) finais

Os paradoxos de minha fé afirmam que:
. Deus escreve a história através das mãos humanas
. Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana
. Deus conhece os fatos que ainda não aconteceram

Qual a relevância destas afirmações para a vida e o relacionamento com Deus e a caminhada no discipulado de Cristo? Ou mais precisamente, como podemos e ou devemos nos posicionar diante destas verdades, de modo a assumirmos as responsabilidades inerentes ao sagrado direito de viver? As respostas serão abordadas em Os paradoxos da minha fé – Parte 2.

Miséria na cultura: decepção e depressão


Leonardo Boff
Adital

Em 1930 Sigmund Freud escreveu seu famoso livro "O mal-estar na cultura" e já na primeira linha denunciava: "no lugar dos valores da vida se preferiu o poder, o sucesso e a riqueza, buscados por si mesmos". Hoje tais fatores ganharam tal magnitude que o mal-estar se transformou em miséria na cultura. A COP-15 em Copenhague trouxe a mais cabal demonstração: para salvar o sistema do lucro e dos interesses econômicos nacionais não se teme pôr em risco o futuro da vida e do equilíbrio do planeta já sob o aquecimento que, se não for rapidamente enfrentado, poderá dizimar milhões de pessoas e liquidar grande parte da biodiversidade.
A miséria na cultura, melhor, miséria da cultura se revela por dois sintomas verificáveis mundo afora: pela generalizada decepção na sociedade e por uma profunda depressão nas pessoas. Elas têm razão de ser. São consequência da crise de fé pela qual está passando o sistema mundial. De que fé se trata? A fé no progresso ilimitado, na onipotência da tecno-ciência, no sistema econômico-financeiro com seu mercado como eixos estruturadores da sociedade. A fé nesses deuses possuía seus credos, seus sumos-sacerdotes, seus profetas, um exército de acólitos e uma massa inimaginável de fiéis.


Hoje os fiéis entraram em profunda decepção porque tais deuses se revelaram falsos. Agora estão agonizando ou simplesmente morreram. Os G-20 em vão procuram ressuscitar seus cadáveres. Os professantes desta religião de fetiche, agora constatam: o progresso ilimitado devastou perigosamente a natureza e é a principal causa do aquecimento global; a tecnociência que, por um lado, tantos benefícios trouxe, criou uma máquina de morte que só no século XX matou 200 milhões de pessoas e hoje é capaz de erradicar toda a espécie humana; o sistema-econômico-financeiro e o mercado foram à falência e se não fosse o dinheiro dos contribuintes, via Estado, teriam provocado uma catástrofe social. A decepção está estampada nos rostos perplexos dos lideres políticos, por não saberem mais em quem crer e que novos deuses entronizar. Vigora uma espécie de nihilismo doce.

Já Max Weber e Friedrich Nietszche haviam previsto tais efeitos ao anunciarem a secularização e a morte de Deus. Não que Deus tenha morrido, pois um Deus que morre não é "Deus". Nietszche é claro: Deus não morreu, nós o matamos. Quer dizer, Deus para a sociedade secularizada não conta mais para a vida nem para coesão social. Em seu lugar entrou um panteão de deuses, referidos acima. Como são ídolos, um dia, vão mostrar o que produzem: decepção e morte.

A solução não reside simplesmente na volta a Deus ou à religião. Mas em resgatar o que eles significam: a conexão com o todo; a percepção de que o centro deve ser ocupado pela vida e não pelo lucro e a afirmação de valores compartidos que podem conferir coesão à sociedade.

A decepção vem acolitada pela depressão. Esta é um fruto tardio da revolução dos jovens dos anos 60 do século XX. Ai se tratava de impugnar uma sociedade de repressão, especialmente sexual e cheia de máscaras sociais. Impunha-se uma liberalização generalizada. Experimentou-se de tudo. O lema era: "viver sem tempos mortos; gozar a vida sem entraves". Isso levou a supressão de qualquer intervalo entre o desejo e sua realização. Tudo tinha que ser na hora e rápido.

Disso resultou a quebra de todos os tabus, a perda da justa-medida e a completa permissividade. Surgiu uma nova opressão: o ter que ser moderno, rebelde, sexy e o ter que desnudar-se por dentro e por fora. O maior castigo é o envelhecimento. Projetou-se a saúde total, padrões de beleza magra até a anorexia. Baniu-se a morte, feita espantalho.

Tal projeto, pós-moderno, também fracassou, pois não se pode fazer qualquer coisa com a vida. Ela possui uma sacralidade intrínseca e limites. Uma vez rompidos, instaura-se a depressão. Decepção e frustração são receitas para a violência sem objeto, para o consumo elevado de ansiolíticos e até para o suicídio, como vem ocorrendo em muitos países.

Para onde vamos? Ninguém sabe. Somente sabemos que temos que mudar se quisermos continuar. Mas já se notam por todos os cantos, emergências que representam os valores perenes da "condição humana". Precisa-se fazer o certo: o casamento com amor, o sexo com afeto, o cuidado para com a natureza, o ganha-ganha em vez do ganha-perde, a busca do "bem viver", base para a felicidade que hoje é fruto da simplicidade voluntária e de querer ter menos para ser mais.

Isso é esperançador. Nessa direção há que se progressar.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Só para registro


Acabei de ler um livro bem legalzinho.. Simples Filosofia" de Pablo Capistrano - ele conta a história da filosofia em 47 crônicas de jornal - Algumas muito interessates! Postarei algumas crônicas aqui =)

A casa de Deus



Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia


Algumas verdades aparecem pelo pensamento. Elas entram pela porta de cima de nossas ideias e surgem lentamente, como se estivessem sendo construídas etapa a etapa, por uma quantidade de anos que ultrapassa nossa própria experiência. Elas nos oferecem certezas fragilizadas pelas evidências que colhemos. Verdades desse tipo são essencialmente provisórias, instáveis, circunstanciais.

O homem já provou quão difícil é manter por muito tempo uma dessas verdades. Mil anos é uma eternidade para que uma das certezas do pensamento se cristalize entre nós. Alguém pensa alguma coisa, publica em um jornal ou em um site na internet, escreve em umas 500 páginas de uma tese que pouca gente vai ler ou comenta em uma roda de amigos. Pronto. Já é tempo suficiente para sua verdade ser desconstruída ou submetida a um processo de decomposição. Vez ou outra alguma monstruosidade intelectual dessas que povoam o mundo ocidental consegue manter, no mundo público, sua verdade racional por alguns meses, anos ou décadas livre de uma desconstrução desse tipo, mas isso não acontece todo dia.

Mas o jogo é esse mesmo. Nessa vida, as verdades que a gente acha pelo pensamento são construídas para serem desmontadas, arquitetadas para serem implodidas, erguidas para que alguém venha e as derrube. Mas apesar desse ser o jogo do pensamento há um outro nível de verdades que são desconcertantemente mais sólidas.

Quando chegou com sua companhia de infantaria portuguesa em Angola no começo dos anos 1960 para sufocar uma rebelião nacionalista, o soldado João Figueira, então com menos de vinte anos, deparou-se com uma imagem aterradora. Espalhadas pela vegetação espinhenta e retorcida do cerrado angolano, penduradas nos galhos secos, como se fossem totens sinistros que avisavam sobre uma guerra longa, terrível e selvagem; jaziam dezenas de cabeças humanas, decepadas de seus corpos e postas como sinais no meio da mata.
Desde o tempo da velha Ilíada que o corpo dos homens é um templo que não se deve profanar. Ali Homero (ou qualquer outro fantasma de quem não se sabe o nome) cantou a ira de Aquiles, que, possuído de ódio, matou Heitor e mutilou seu corpo, após arrastar o cadáver em frente às muralhas da velha cidade de Troia, diante dos olhares consternados do pai e da esposa do morto.

Aquiles desconsiderou a velha lei e profanou o corpo de seu inimigo. A descrição da luta e da profanação do corpo de Heitor por um Aquiles possuído de ira é uma das mais comoventes e desconcertantes cenas da literatura ocidental.

Não é simplesmente o fato de Aquiles ter matado Heitor. Isso faz parte do jogo de vida de um guerreiro e, diante da tragédia que se anunciava, a morte de um homem, por mais valoroso e heroico que fosse, não era nada além de uma morte qualquer. O problema é outro. Mutilar o corpo do morto, sequestrá-lo, privá-lo de sepultura é uma das piores ofensas que podem ser feitas à linhagem de alguém. Todos os membros da família são amaldiçoados. Os vivos, os mortos e os que ainda não nasceram. Por isso, Príamo (pai de Heitor), na narrativa de Homero, se humilha diante do assassino de seu filho para suplicar que seu corpo seja devolvido.

Tanto Príamo na velha Turquia do começo do tempo quanto o pobre soldado português João Figueira, pego em sua juventude no meio de uma das últimas guerras coloniais do século XX, sentiram, cada qual a seu modo, cada qual com sua dor particular, que o tipo de verdade que emerge do corpo de alguém tem uma autoridade mais intensa do que aquela gaseificada construção mental que os filósofos costumam produzir quando se põe a pensar.

A sacralidade do corpo humano tem a ver muito provavelmente com a imensa força de sua experiência. Se minha mente pode expandir minha linguagem e me transferir para lugares distantes, o corpo tem o poder de me convencer de suas razões de modo inexorável.
Por muito tempo eu me questionei sobre a origem da fé. De onde poderia surgir a certeza que alguns tem de suas crenças e de seus dogmas, muitas vezes tão frágeis quando submetidos ao crivo de alguma razão qualquer? Hoje eu começo a perceber que a experiência religiosa não é algo abstrato, distante e cerebral. A ideia equivocada de que religiosidade é sempre “uma coisa do espírito” e que por isso está muito distante do mundo concreto dos homens nos leva a pensar que as religiões são sempre doutrinas e nunca experiências particulares, acontecimentos íntimos e radicalmente individuais, que ecoam na vida de seus adeptos pela porta de entrada de seus corpos.

As experiências da velha religião dos xamãs me ensinaram que a dança, o canto, as bebidas mágicas, os sinais simbólicos que levam ao entusiasmo divino passam pelo corpo, atravessam seus canais e dominam o indivíduo a partir daquilo que ele tem de mais real e de mais concreto. Príamo, o velho rei do tempo sombrio de Homero, e João Figueira, o pobre soldado português da era moderna, sabem que o corpo é a casa de Deus e que as verdades que emergem dele marcam mais intensamente a vida dos homens.

Meu corpo não está sozinho, boiando no universo como se fosse uma bolha de sabão solta na sala de estar de um apartamento, em uma imensa cidade, de um mundo gigantesco, em uma galáxia qualquer desse universo que ninguém sabe onde acaba. Meu corpo está ligado a tudo porque não há uma linha, traçada por algum lápis metafísico ou por alguma substância pensante, que me separe de todas as outras coisas que me cercam. Minha solidão é um presente da minha linguagem e do meu pensamento; meu corpo, os velhos xamãs sabiam disso, é uma casa onde moram todos os deuses.

sábado, 3 de abril de 2010

Jean-Jacques Rousseau, na carta a Christophe de Beaumont, escreve que a juventude jamais se ex­travia por sua própria conta, e que todos os seus erros decorrem do fato de ter sido mal conduzida. Em Emílio, o filósofo fala da condução do jovem, ou do adulto, ou da criança - da educação, em suma. Mas educação no sentido de um processo funcional de desenvolvimento de habilidades que proporcionem o conhecimento do que há de melhor no ser humano. Aprender a ser. Rousseau, ao tratar do "bom selva­gem", chama a atenção para o fato de que, em estado primitivo, o homem tinha um estado de felicidade natural, e até de piedade, como o que se nota nos próprios animais.

Seria como um cantor que, sozinho, canta sua canção, e com ela fica feliz. Ou um dançarino, um es­cultor ou artesão. De repente, surge alguém que faz a mesma coisa. E as pessoas começam a dizer para o primeiro artista: "Esse fulano, que acaba de chegar, canta, dança ou esculpe melhor do que você". Assim surgem as comparações, que geram competições. E essas competições vão ter como conseqüência uma desenfreada busca pelo poder. Surge um conceito de posse. Surge a coisificação do ser humano.

A competição, sob esse prisma, não leva à evolução, mas ao desejo de destruição. Leva ao esvazia­mento da espontaneidade. Porque tudo o que se quer é conseguir ser melhor do que o outro.

A educação contemporânea trabalha com essa dicotomia entre competir e cooperar. O processo de avaliação leva, muitas vezes, a uma exacerbação da competição, e o vestibular caminha na mesma dire­ção: "Quem é o melhor? Quem sabe mais? Quem consegue vencer?" E a escola, refém desse diapasão, acaba por ensinar com acordes desafinados.

Na vida profissional, quem vale mais não é aquele que decorou mais coisas, mas o que é capaz de partilhar, de trabalhar em equipe, de desenvolver autonomia e criatividade. Quando se tenta homoge­neizar o processo educativo, destrói-se a criatividade. Cada aluno é diferente e isso o torna rico, único.

Suas possibilidades não podem ser reduzidas a uma visão que compara e iguala os diferentes. Porque a simples comparação leva a uma competição desnecessária. Por essas razões é que consideramos que a autonomia deve ser a palavra. Aprender a conviver. Aprender a respeitar as diferenças, e, mais do que isso, aprender com elas. Raça superior não existe, nem gênero superior, nem etnia privilegiada. Não há cidadão de primeira ou de segunda categoria. A cidadania é para todos. Para todos os diferentes, porque iguais não há.

A educação tem de ser reinventada o tempo todo. Mas, em nenhuma hipótese, pode-se jogar fora o que já se construiu a ceticismo e a visão distante da realidade levam a um certo descrédito da popula­ção com relação às políticas públicas de educação.
É o mesmo sol que derrete a cera e seca a argila. (Antoine de Saint-Exupéry)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O que é a filosofia?” em menos de 3 mil palavras



Da maneira como a desenvolvo, a filosofia tem uma dupla acepção. De um ponto de vista geral, ela é uma narrativa de desbanalização do banal. De um ponto de vista específico, ela é uma investigação que lida com os mecanismos que nos fazem tomar o aparente pelo real – se é que estamos envolvidos nesse problema.

Essa maneira de descrever o que faço como filósofo é o melhor modo que encontrei para colocar meu leitor, de modo rápido, inteirado a respeito do que é o meu cotidiano.

Tudo que vejo e que os outros também enxergam todos os dias se torna banal para nós. O trânsito não funciona na cidade de São Paulo e o prefeito diz que está tudo bem. Alguns reclamam. Mas a pressão do trabalho faz com que todos entrem no ônibus lotado e se submetam a condições desumanas para ir para o serviço. Eis que em determinado momento, ninguém reclama mais. Toma-se como banal que o trânsito não funcione. Ocorre aí a banalização de nossa própria vida. Então, é hora do filósofo mostrar uma cidade grande, em outro lugar, em outro país, onde o trânsito funciona – para desbanalizar o nosso banal, que é o trânsito não funcionando.

O filósofo é aquele que vê o que todos vêem todos os dias, mas ele, diferente de outros, aponta para situações em que aquilo que é visto não é algo que deveria estar ali como está. Poderia não estar. Talvez devesse não estar como está.

Até aí, estou no âmbito da minha atividade de desbanalizador do banal. Caminho na função da filosofia, assumida de acordo com a acepção geral que dou a ela. Mas essa desbanalização do banal me conduz para à minha segunda acepção de filosofia.

Entro em casa, ligo a televisão e vejo o prefeito, de helicóptero, passeando por cima de São Paulo e afirmando que o trânsito em São Paulo não é tão ruim, que “sempre foi dessa maneira”, que São Paulo é muito grande e que com 22 milhões de pessoas aglomeradas “não poderia ser diferente”. Eis que está na sala um vizinho, e ele apóia o prefeito. Ele acredita que, de certo modo, o prefeito está certo. Como poderiam 22 milhões de pessoas aglomeradas, todo mundo de carro, não congestionar a cidade – impossível. O jeito de lidar com a coisa, então, é uma só: paciência – esta é a fórmula do prefeito e do meu vizinho. Bem, diante dessa conclusão do meu vizinho, minha atividade de desbanalização do banal caminha para o campo da minha segunda acepção de filosofia. Pois o que meu parente está fazendo é simplesmente parar de pensar e aceitar o discurso – ideológico – do prefeito.

O problema, então, não é o de convencer o meu vizinho de que o prefeito está usando de um discurso ideológico. O problema filosófico, neste caso, é mais complexo. O filósofo não é o que vai desideologizar o discurso do prefeito. O filósofo é o que vai investigar para entender quais os mecanismos (se é que existem) tornaram o vizinho capaz de tomar o aparente – o problema do trânsito não tem solução – pelo real – o problema do trânsito deve ter solução, uma vez que a racionalidade em outros lugares eliminou tal problema.

2008 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo